Feche os olhos por um instante e imagine: aqui onde nós estamos não havia nada: nem piso, nem paredes, nem teto. Nada. Nem altar havia. Há 59 anos, algumas poucas pessoas se reuniram na clareira aberta no cerrado que havia aqui para uma celebração íntima e simples. Foi o primeiro culto público anglicano na cidade, ao ar livre, aqui mesmo no terreno onde um dia seria erguida nossa igreja. O reverendo Saulo, ministro nomeado para a nova missão anglicana, foi o oficiante do culto. E o querido Roberto Dantas, o acólito.
Imagine a cena: ali fora, na rua, mal havia algumas construções. E poeira. Estávamos em plena seca do Planalto Central, como hoje, E o vento frio, naquele início de manhã, criava nuvens e nuvens de um pó vermelho muito fino que encobria tudo. Brasília havia sido inaugurada dois meses antes! A cidade tinha acabado de nascer. E já a missão anglicana começava a engatinhar na nova capital do Brasil. Depois do lançamento da pedra fundamental naquele culto, outros foram realizados, mas todos nas casas dos próprios membros da igreja, ou mesmo no hotel da Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, onde morava o reverendo Saulo.
E pensar que a epopeia havia começado dois anos antes, a bordo de um jeep velho que cruzou as estradas esburacadas entre o Rio de Janeiro e o Planalto Central do Brasil carregando os primeiros “bandeirantes anglicanos”: o bispo Louis Chester Melcher, já no último ano de seu episcopado no Brasil; o venerável arcediago Gaudêncio Vergara dos Santos e o reverendo Raymond Karl Riebs. Eles atravessaram São Paulo e Minas Gerais até conseguir alcançar o coração de Goiás.
Deviam estar cansados quando chegaram. Até porque no trajeto não havia estrada que merecesse este nome. Mas a vontade de conhecer o cenário onde um presidente visionário rasgava o cerrado para construir uma nova e revolucionária capital falou mais alto. Foi o tempo de relaxar um pouco e já estavam de novo aboletados no jeep, pegando a estrada. Mas, que estrada? Não havia estrada! Nem rua, nem avenida, nem W-3, nem L-2, nem eixo rodoviário. Nada. Só uns caminhos toscos, por onde tratores e caminhões carregados de areia, cimento e aço levantavam poeira. Mesmo assim, por quatro horas, em busca de um terreno para levantar um templo, o velho jeep percorreu aqueles ermos que se transformariam no lugar onde hoje moramos, trabalhamos, estudamos – vivemos. A nossa cidade.
Foi só na segunda visita, desta vez do bispo Sherrill, que houve a primeira conversa com um sujeito baixinho, de fala miúda, que fumava como uma chaminé, quase não dormia e era… ateu! Um tal de Oscar Niemeyer, autor do projeto de uma igreja na Pampulha, em Belo Horizonte, tão arrojado e atrevido que demorou até os devotos conservadores terem coragem de lá entrarem para rezar. Mesmo assim, o bispo Sherrill conversou com o arquiteto sobre o projeto de um templo. Niemeyer prometeu elaborar um projeto.
Na terceira visita, agora dos reverendos Octacílio Moreira Costa e Curt Kleemann, foram tomadas as providências para adquirir um terreno. E o projeto do Niemeyer? Nem notícia.
Por essa época, os presbiterianos, que já estavam por aqui juntamente com os católicos, os metodistas e os batistas, conseguiram a promessa de um terreno. Mas o terreno era tão grande que eles trocaram por dois menores. Só que as autoridades se esqueceram… do primeiro terreno, o grandão! Aqui entre nós: o pastor presbiteriano Natanael Emrich fez boca de siri. Ficou esperando que “uma igreja amiga” – como ele próprio se expressou – aparecesse precisando de um terreno. (normal) E a nossa igreja foi a felizarda! Por isso hoje estamos aqui. Uma curiosidade foi que os presbiterianos ficaram até 1967… sem templo. Enquanto não tiveram o deles, usaram este nosso, por empréstimo.
Mas até este aqui ficar pronto, demorou. O bispo Sherrill veio novamente por aqui, e insistiu com Niemeyer. Ele anotou a localização do terreno e prometeu um projeto. Um ano depois, e nada! (arrojado) Aí o bispo peitou o Niemeyer com vontade de resolver a parada. Já chegou com uma lista de necessidades que deveriam ser atendidas pelo projeto. Niemeyer sentiu a pressão e indicou o colega Glauco Campelo pra tocar o projeto e, surpresa! Ufa! O projeto saiu. E veio com tudo: igreja, salão, escritório, casa do zelador, tudo. Mas Glauco e Niemeyer pensavam que a igreja era só pros ingleses que já moravam aqui. Por isso, por segurança, o projeto previa um muro alto em volta. Parecia um quartel. Mas pouco tempo depois, felizmente, o equívoco foi desfeito e o projeto, alterado. Até a inauguração oficial do templo, em 1963.
O tempo andou, a cidade cresceu, a missão anglicana se expandiu, a ação social se afirmou, o amor se estendeu sobre tudo. Já não se sabe o número de jovens e crianças carentes daqui e das cidades-satélites atendidos com doação de material escolar, e muitas, muitas outras ações (e mais isso e mais aquilo, completem aí…)
O tempo seguiu seu curso, muita gente nasceu e aqui foi consagrada ao Senhor. Muita gente passou e continua passando. Reverendos Diamantino, Ernesto, Patrícia, Elias, Guilherme, Aubri, Magda, Tatiana… Dom Sória, Dom Almir, Dom Maurício…
Nessas seis décadas, muitos ficaram pelo caminho. Mas deixaram sua marca de carinho, sua contribuição de amor. Citar todos levaria a manhã inteira, talvez entrasse pela noite, porque são muitos, são tantos. Na lembrança de apenas quatro, homenageamos todos.
Como esquecer seu Porta e seu Ivânio, dois exemplos de acolhimento, aquele sorriso sempre aberto para receber os visitantes, ali na porta da nossa igreja? E do inesquecível José Carlos Valente, o irreverente, o bem humorado e querido Dr. Valente, com sua disposição para o sucesso dos nossos eventos? E a querida Sarita, que nos deixou outro dia, e que tanto contribuiu com a nossa escola dominical, e acolheu os filhos de tantos de nós na sua escola Parque Encantado?
Hoje, todos eles estão se divertindo no grande e eterno Parque Encantado do Pai, no acolhimento e na alegria d’Ele, e no amor que vence a distância e a ausência.
Pois estamos hoje todos juntos, continuamos juntos, e sempre estaremos juntos. Desde aqueles pioneiros que sujaram os sapatos com a poeira do cerrado para se reunir naquele 5 de junho de 1958, acreditando no sonho do menino louco de Diamantina, o filho da professorinha Júlia. Aquele mesmo, o Juscelino do sorrisão bonito, que prometeu plantar a capital no coração do Brasil, e plantou tão bem plantada que ela está aí, assombrando o mundo com suas curvas, sua arquitetura revolucionária, da qual faz parte o nosso templo, nossa “igreja da casinha”, como é tratada carinhosamente pelos meninos de hoje.
Vamos chegando ao final. Um bom momento para lembrarmos as palavras do bispo Sherrill em 21 de maio de 1961, Dia de Pentecostes, no ofício em que confirmou a primeira turma de episcopalianos em Brasília:
“O cristianismo não é apenas uma doutrina: é também uma norma de conduta para reger a vida das pessoas sobre a face da terra, não podendo escapar de sua salutar influência as atividades básicas da espécie humana. A doutrina cristã é a norma que nos ensina a viver como irmãos, como bons cristãos e como pessoas dignos de Deus, da pátria e do mundo”.
Hoje é dia de festa! Então vamos todos, todos juntos, celebrar com um grande abraço, os 59 anos de nossa comunidade, e com ela, o amor e a alegria de Deus!
Paulo José Cunha
Jornalista
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