Recriado no ano de 2003, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) constituiu-se como “espaço institucional para o controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, com vistas a promover a realização progressiva do Direito Humano à Alimentação Adequada”. Competia-lhe propor à Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional as diretrizes e prioridades da polícia nacional de segurança alimentar e nutricional. Participou da formulação de importantíssimas políticas públicas como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, Programa de Aquisição de Alimentos, a garantia da compra de produtos oriundos da agricultura familiar na Política Nacional de Alimentação Escolar, teve um papel crucial na criação da Emenda Constitucional 64 que instituiu o o Direito Humano à Alimentação Adequada na Carta Magna, acompanhava o debate público sobre o controle na regulamentação de agrotóxicos no Brasil.
O tempo verbal está no pretérito. Por meio da Medida Provisória nº 870, lançada no primeiro dia de mandato do atual governo federal – o que indica ser algo do núcleo programático do mandatário, já aspirado pelas forças que compõem seu governo – o Consea e demais conselhos vinculados à Presidência da República, foram extintos. Um sinal inequívoco de recusa de princípios democráticos de participação da sociedade civil organizada no ciclo de políticas públicas ou, mais ainda, de mesmo um diálogo ou escuta com a mesma. Leva as atribuições do Consea para um opaco gabinete do Ministério da Cidadania e fragiliza a institucionalidade e exigibilidade relativo às políticas públicas.
Esta ação fatídica ocorre num contexto em que, no ano precedente – 2018, mais de 500 programas federais não tiveram dotação orçamentária. Neste esteio de cortes em políticas sociais, vulnerabilidade da institucionalidade reivindicativa de direitos sociais e trabalhistas dos trabalhadores e trabalhadoras, agrava-se a insegurança alimentar no Brasil. Em 2017 a FAO/ONU apresentava o crescimento das situações de fome no Brasil e que, em contrapartida, 22,3% da população com mais de 18 anos estava em obesidade, o que não pode ser interpretado como uma “supernutrição” mas, em muitos casos, indica dificuldades de suprir as necessidades nutricionais compensadas com acesso a alimentos calóricos mas deficientes. Ainda, de 2017 a 2018, o Brasil caiu 13 colocações no Índice Global da Fome de acordo com a Ação Agrária Alemã (Welthungerhilfe), a entidade irlandesa Concern Worldwide e com o Instituto Internacional de Investigação sobre Políticas Alimentares (IFPRI), quedando-se em 31° lugar entre 119 países. Estes dados consolidam quatro indicadores: subnutrição, caquexia infantil (grau de extremo enfraquecimento e emagrecimento), atraso no crescimento e mortalidade infantil.
Além destes números, o impacto da precarização do quadro de políticas sociais e de segurança alimentar e nutricional impacta famílias campesinas, suas possibilidades de comercialização de obtenção de renda, a economia de pequenos municípios, a rede socioassistencial beneficiada por alimentos dos agricultores familiares, a saúde de milhões de brasileiros (relaciona-se aos parâmetros ideológicos destas ações o fato de que, em média, este governo já liberou a autorização para uso e comercialização de mais de um agrotóxico por dia, incluindo com alto nível de toxicidade).
A sociedade civil não assiste impassivamente. Em 27 de fevereiro realizou atos de reivindicação de justiça, democracia e direitos em todo o Brasil, numa ação batizada de “Banquetaçõ”, amalgamada no eixo do clamor pelo restabelecimento do CONSEA e para que o parlamento derrube a MP 870. O evento central do ato político foi a doação de refeições preparadas por cozinheiros voluntários em pontos centrais da cidade.
Em Goiânia, entidades da sociedade civil, sindicatos, professores e professoras, estudantes, agricultores e organizações campesinas, profissionais liberais, voluntários oriundos de diversas trajetórias construiram uma ampla ação organizada. Foi realizada uma Audiência Pública na Assembleia Legislativa pautando a trajetória histórica do SISAN e do CONSEA, denunciando os impactos que a MP acarreta. Um cortejo com carro de som e batucada promovida pelo Desencuca, coletivo em prol de direitos para a saúde mental e política humanizada de cuidados com o sofrimento psíquico, fez reverberar a pauta para a sociedade goiana chamando a atenção para as questões relacionadas. Culminou no ato do Banquetaço numa região central em frente ao histórico Grande Hotel, com mais de 1500 pratos distribuídos, também com opção vegetariana, uso de plantas alimentícias não-convencionais (PANCS), adquiridos essencialmente de agricultores familiares e produções orgânicas.
A problemática foi socializada com a população transeunte, predominantemente pessoas que trabalham pelo Centro, mas incluindo também aposentados, aposentadas, pessoas em situação de rua. Um abaixo-assinado circulou contra a MP 870 e a recepção por parte dos cidadãos e cidadãs foi altamente positiva, com agradáveis manifestações de apreço e prazer pela refeição compartilhada.
A Paróquia Anglicana de São Felipe marcou presença, no espírito da dimensão profética e diaconal da missão Na orientação sobre a ética de partilha, de partido para com os oprimidos e explorados, integrando a esfera da refeição em comum como ato espiritual simbólico para o que Jesus apontava diante do significado do Reinado de Deus. Vivenciamos assim a acolhida do carinho divino no enraizamento fraternal com os desafios da história e da sede de justiça.
Rodrigo Gonçalves, é Ministro Leigo na Paróquia São Felipe em Goiânia/GO.
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